terça-feira, 29 de setembro de 2020

Jó 1-7

Consideramos como sendo quase um milagre que este livro tão antigo tenha sido aceito pelo povo de Israel como parte dos “oráculos de Deus” (ARA), que foram “confiados” em suas mãos (Rm 3:2). Jó deve ter sido contemporâneo de Abraão, mas certamente não era de origem abraâmica e, portanto, era um gentio, e ainda assim nos foi apresentado com palavras de louvor que dificilmente achamos concedidas a qualquer filho de Israel. Além disso, no livro não há alusão à lei na qual o judeu se vangloriava. Portanto, não havia nada que atraísse particularmente o judeu, mas sim aquilo que poderia ofendê-lo. No entanto, através dos séculos, o livro permaneceu e chegou até nós.

Nisso vemos não só a sabedoria de Deus, mas a Sua misericórdia também. Assim que o pecado entrou no mundo, um problema desconcertante se apresentou na morte do justo Abel. Por que os piedosos deveriam sofrer? Se a vida de um homem realmente agrada a Deus, por que esse prazer não poderia ser indicado por um bem estar especial na vida desse homem? Existe, é claro, o problema inverso: Por que os ímpios prosperariam? Isso é tratado no Salmo 73. Porém, muito antes dos dias dos salmistas, Deus achou conveniente em Sua misericórdia resolver o enigma para nós, permitindo que uma extrema catástrofe viesse sobre Jó, e fazendo com que a história fosse registrada e preservada num relato inspirado. A solução foi dada assim que “os oráculos de Deus” começaram a aparecer.

No primeiro versículo, o escritor inspirado – quem quer que tenha sido – deixa muito claro o caráter excepcional de Jó, e no versículo 8 ele registra que uma descrição precisamente semelhante dele havia saído dos lábios do próprio Jeová, mas com o acréscimo de que, em sua piedade, ele superou seus contemporâneos, pois “ninguém há na Terra semelhante a ele”. De todos os homens, portanto, aqui estava o homem sobre quem o sorriso do Todo-Poderoso deveria descansar.

E, de fato, ele havia prosperado bastante na providência de Deus. Ele tinha uma família muito favorecida e imensos rebanhos de animais, os quais representavam riqueza naqueles dias. Ele foi o maior de entre os homens do Oriente, assim como o mais piedoso. Sua piedade abrangeu sua família, assim como a si próprio, pois ele oferecia holocaustos por seus filhos nos dias de suas festividades, para que não houvesse, de nenhuma forma, alguma ofensa. Essa é a imagem apresentada desse homem notável.

Nos versículos 7-12, nos é concedido um vislumbre nos bastidores deste mundo. Satanás, embora sendo uma criatura caída, ainda tem acesso permitido à presença de Deus. Sua expulsão, sendo lançado à Terra, mencionada em Apocalipse 12, ainda é futura. Ele é mencionado nesse capítulo como “o acusador de nossos irmãos”, e é exatamente isso que o vemos fazendo aqui: ele não muda. Ele acusou Jó de egoísta em sua visível piedade: em outras palavras, que ele era em grande parte um hipócrita – exatamente o que encontraremos os seus três amigos insinuando. Satanás praticamente desafiou Deus a testar Jó por alguma catástrofe, quando a piedade profunda de Jó seria derrubada e ele amaldiçoaria o Deus a Quem Jó professava considerar.

O Senhor aceitou o desafio de Satanás e permitiu ao adversário agir contra tudo o que Jó tinha, mas não contra ele mesmo. Satanás agiu prontamente e as catástrofes vieram com um efeito devastador.

Foi uma cena muito instrutiva. Percebemos três causas e dois efeitos. A primeira grande causa é Deus. A segunda causa inferior é Satanás. A terceira causa ainda menor – ou antes, as causas – os sabeus (v. 15), os caldeus (v. 17) e o que os homens chamariam de forças da natureza (vs. 16, 19). O primeiro efeito foi uma varredura completa de toda a família e posses de Jó: o segundo e derradeiro efeito foi um golpe esmagador contra Jó.

O que deve ter se tornado tão esmagador para Jó foi o fato de que quatro agentes diferentes foram empregados. Se uma calamidade gigantesca tivesse atingido tudo, o efeito em sua mente provavelmente não teria sido tão grande. Mas quatro calamidades separadas, todas em um dia, e duas delas sendo o que poderíamos chamar hoje de “atos de Deus”, devem ter feito da ação maliciosa de Satanás algo desestruturador além de todos os nossos pensamentos ou palavras. Arriscamo-nos a pensar que esse conjunto de catástrofes, caindo sobre um homem em um dia, nunca foi igualado em toda a história do mundo.

A piedade de Jó se provou ser não meramente superficial. Deus sabia como sustentar Seu verdadeiro servo, e ele resistiu à prova e não amaldiçoou a Deus. Satanás foi demonstrado como um mentiroso e derrotado. As palavras de Jó “o Senhor deu, e o Senhor tirou” (AIBB) têm sido repetidas milhões de vezes por santos entristecidos, que também bendisseram a Deus em vez de amaldiçoá-Lo, assim como Jó.

Satanás, no entanto, retornou à acusação, embora Deus pudesse novamente dar Seu testemunho ao notável caráter de Jó. Ele sabia muito bem que o próprio corpo de um homem é mais chegado e mais estimado do que tudo o que ele possa possuir, então ele disse: “Pele por pele, e tudo quanto o homem tem dará pela sua vida”. Esta observação do diabo foi uma vez citada em tribunal por um advogado, na intenção de favorecer sua causa. Antes de citar esse versículo ele fez a seguinte introdução: “Como uma grande autoridade disse...”, sentindo que estava bastante seguro quanto ao seu poder de convencimento uma vez que citou a Bíblia! O juiz, que conhecia sua Bíblia melhor do que o advogado, disse calmamente: “Estou interessado em observar quem o sábio advogado cita como sendo ‘uma grande autoridade!’”

Será útil, portanto, lembrar aos leitores de que, neste livro, citamos não apenas as palavras de Satanás, mas também muitas palavras de homens, algumas delas verdadeiras o suficiente, como mostram outras escrituras, mas outras muito abertas a questionamentos. Nenhum desses homens que falaram foram inspirados em suas declarações, embora tenhamos um relato inspirado do que eles disseram, para que a imagem apresentada seja perfeitamente verdadeira. Nunca devemos ignorar a diferença entre revelação e inspiração. Toda a Escritura é inspirada por Deus, mas nem toda palavra encontrada nela é uma revelação de Deus. Quando Salomão escreveu, por exemplo: “Não há nada melhor para o homem do que comer, beber” (Ec 2:24), ele não estava proferindo uma revelação de Deus, mas sua própria tolice – inspirado a registrá-la para nosso aviso.

Mas, voltando à nossa história, com a permissão dada por Deus, Satanás afligiu o pobre Jó com uma doença tão virulenta como jamais registrada, embora não tenha tido permissão para tirar a vida dele. Seu estado se tornou tão assustador e repulsivo que sua própria esposa o incitou ao pecado que Satanás havia planejado para que ele cometesse. Apenas ela foi poupada da família e, assim, tornou-se, talvez sem querer, uma incentivadora do desígnio de Satanás. Mas, novamente, apoiado por Deus, Jó resistiu à prova e não pecou com os lábios. O registro da reação de Jó é desta vez mais negativo do que positivo, notamos que Satanás ainda foi derrotado e, a partir desse ponto, ele desaparece da história.

Aqui, portanto, a história poderia terminar, se o objetivo dela fosse apenas nos mostrar como o poder de Deus triunfa sobre as ações malignas do adversário. Isso é de fato claramente manifestado, mas havia outro ponto; o de demonstrar como esse mesmo poder, juntamente com Sua bondade perscrutadora, triunfou na consciência, no coração e na vida de Seu santo provado, transformando finalmente a catástrofe mais tenebrosa em rica bênção, tanto espiritual como materialmente.

Como um primeiro passo nessa direção, os três amigos de Jó apareceram em cena. No final de Jó 2, eles são apresentados e o que é registrado indica que eles vieram cheios de empatia e com a melhor das intenções. O registro das calamidades de Jó e o horror de seu estado corporal os levou às lágrimas, e os surpreendeu tanto que, durante uma semana inteira, ficaram sentados em sua presença, sem palavras. A realidade de tudo isso excedeu em muito o que eles ouviram. Terrível deve ter sido isso a ponto de reduzi-los a essa condição sem palavras. As expressões de empatia que eles pretendiam proferir se congelaram em seus lábios.

Mas a semana do silêncio teve que terminar. A presença deles, as lágrimas, os mantos rasgados, o pó sobre a cabeça afetaram Jó e finalmente o levaram a quebrar o silêncio. Ele abriu a boca e amaldiçoou o seu dia. Ele não amaldiçoou a Deus, note-se. Ele lançou uma maldição no dia em que nasceu; deplorando o fato de ele não ter morrido quando sua mãe lhe deu à luz. Ele antecipou que, se nunca tivesse visto a luz, estaria “deitado e quieto” (cap. 3:13 – TB) e não nessa aflição terrível. Nos dias de Jó, não havia muita luz quanto ao mundo invisível, mas ele sabia que a morte não significava extinção do ser, mas para o descanso dos santos e liberdade dos problemas causados pelos ímpios, como os que ele experimentara dos sabeus e caldeus. “Ali os ímpios cessam de perturbar (Jó 3:17 – AIBB); de perturbar outras pessoas, não de serem perturbados. Lá aqueles cuja força está esgotada estão em repouso.

Entre a humanidade quase universalmente, um aniversário é uma ocasião de lembrança e gozo. Para o pobre Jó, pareceu um momento para ser deplorado e amaldiçoado. Nos seus dias de prosperidade, ele temia que algum tipo de adversidade pudesse sobrevir. Agora isso o atingira com uma força incomparável. Sua expressão agonizada, registrada em Jó 3, certamente provoca nossa empatia enquanto a lemos, cerca de quatro mil anos depois de ter sido falada.

O silêncio de uma semana sendo quebrado, Elifaz se comoveu a falar. Suas primeiras palavras, no início de Jó 4, têm um espírito gentil e atencioso. Ele reconheceu que Jó havia sido um ajudador e provedor de outros, mas fez uma pergunta pertinente no versículo 6, onde J. N. Darby traduz como: “Não tem sido tua piedade a tua confiança, e a perfeição dos teus caminhos a tua esperança?”

Aqui, acreditamos, Ele colocou o dedo no ponto fraco de Jó, como é mostrado no restante do livro. O caráter e os modos de Jó eram excelentes, certificados pelo próprio Deus, mas, sendo assim, quão sutil é a armadilha para torná-los a base da confiança e esperança de alguém e construir tudo sobre isso, tanto diante de Deus quanto diante dos homens. É o que vários santos muito piedosos têm feito desde os dias de Jó.

Mas em seu próximo parágrafo (vs. 7-11), Elifaz entende mal toda a situação. Ele pergunta: “Quem sendo inocente pereceu?” (cap. 4:7 – JND) Sem dúvida, ele não conhecia Gênesis, aquele livro provavelmente não tendo sido escrito em seus dias, mas as coisas antigas eram conhecidas pela tradição cuidadosamente preservada. O que dizer de Abel? Ele pereceu sendo inocente. Ora, a primeira tragédia registrada depois que o pecado entrou no mundo invalida a posição que Elifaz assumiu. O justo Abel foi cortado. Daí a ideia, que ele elaborou usando a imagem dos leões, se desfez. O resultado da catástrofe não significa necessariamente que aqueles que o colhem “lavram iniquidade e semeiam o mal”.

Do versículo 12 em diante, o ponto de vista de Elifaz vem mais claramente à luz. Ele começa a relatar uma experiência bastante aterradora pela qual passou, quando viu alguma aparição de um espírito, e recebeu uma palavra de advertência quanto à fragilidade e impureza do homem na presença de seu Criador. O que ele ouviu é perfeitamente verdade. Nenhum homem mortal pode ser mais puro ou mais justo do que Deus. Em ambos os aspectos, ele fica infinitamente aquém da glória de Deus.

Quando abrimos em Jó 5, encontramos Elifaz continuando com essa nota e novamente ele se refere ao que havia visto. O versículo 3 começa: “Bem vi eu... E se formos para Jó 15, onde está gravado seu segundo discurso, novamente o encontraremos dizendo: “te contarei o que tenho visto (cap. 15:17 – TB). É evidente, então, que seu argumento se baseia principalmente no valor de sua própria capacidade de observação. Ele confiava nessas capacidades, para formar sua opinião quanto ao significado das calamidades que caíam sobre Jó.

Algumas das palavras de Elifaz neste capítulo são perfeitamente verdadeiras: por exemplo, “homem nasce para o enfado, como as faíscas das brasas voam para cima” (cap. 5:7 – ARA), neste mundo de pecado. Novamente, sem dúvida é verdade que Deus “apanha os sábios na sua própria astúcia” (v.13) e que “bem-aventurado [feliz – TB] é o homem a quem Deus corrige” (v.17 – AIBB). Mas podemos ver que todos esses fatos progridem de uma maneira que os fez se colocarem contra o pobre Jó. Ele viu homens lançar raízes e, de repente, amaldiçoados, mas estes eram “os loucos [tolos – JND]. Além disso, seus filhos foram feridos e ladrões tragaram suas posses. É óbvio que todas essas observações levaram uma insinuação contra Jó. Ele parecia ser sábio, mas agora fora levado por sua astúcia – assim parecia a Elifaz.

O conselho dado no final de seu discurso foi bom. Jó não deve desprezar o castigo do Todo-Poderoso, mas sim aceitar a correção, e então a maré do mal se transformaria e a bênção apareceria. Os versículos finais falam da libertação de Deus chegando – de uma prosperidade renovada. O versículo 24 diz: “Saberás que a tua tenda está em paz, visitarás o teu rebanho, e nada te faltará”. O versículo 25 fala de uma numerosa posteridade e o versículo 26 do próprio Jó chegando ao seu fim na velhice.

De fato, essas coisas marcaram os últimos dias de Jó como sabemos, mas a insinuação era que a ausência de tal prosperidade naquele momento era punição de Deus por seu pecado que havia permanecido oculto em sua vida no passado. Elifaz encerrou sua fala afirmando com confiança a verdade de seus comentários. “Assim é”, declarou ele, pois ele já o havia inquirido e visto por si mesmo.

Com tudo isso, no capítulo 6 Jó foi instigado a responder, e ele começa reconhecendo que as flechas que o feriram eram do Todo-Poderoso, mas esses amigos não tinham um senso adequado do peso de sua calamidade e tristeza. Animais saciados não expressam angústia por zurros ou mugidos, de modo que ele não clamou sem uma causa ampla. Ele estava sendo alimentado com “comida repugnante” (v. 7 – ARA) e desejava que Deus terminasse com ele completamente, em vez de prolongar sua miséria.

Dos versículos 14-23, Jó censura seus amigos. Ele era o aflito a quem seus amigos deveriam ter pena, se desejassem andar no temor de Deus, mas, pelo contrário, estavam começando a tratar com ele de maneira enganosa. Eles eram como riachos que se secavam pelo calor, exatamente quando eram mais necessários pelas caravanas de Tema ou Sebá.

No versículo 24, começa um apelo mais direto. Ele desafiou seus amigos a deixarem vagas insinuações e darem lugar a acusação direta. Que lhe mostrassem onde errou, para que, ensinado por eles, Jó pudesse se calar. Ele observou com razão: “Oh! Como são persuasivas as palavras retas!” (ARA), mas o que produziu as “censuras” ou “repreensões” de Elifaz? Quantas vezes entre os irmãos em Cristo há vagas insinuações, ou mesmo acusações, que causam estragos, onde “palavras certas”, baseadas em fatos específicos, teriam se mostrado persuasivas e produziriam o bem.

A resposta de Jó continua em Jó 7, e aqui seu discurso parece se dividir em duas partes; versículos 1-10 e 11-21. Não se pode ler a primeira seção sem ser comovido pelos seus apuros. Ele próprio os sentiu profundamente e, portanto, expressou-os de maneira comovente. “meses de desengano” e “noites de aflição [cansativas – JND] eram sua porção, de modo que, assim como um empregado ou trabalhador ansiava pela sombra da noite e pelos salários, ele ansiava pelo fim. Como a lançadeira do tecelão, seus dias fugiram e ele ficou sem esperança. Seu comovente estado é descrito de maneira mais vívida e seus amigos deveriam estar mais cheios de compaixão.

Mas na segunda parte, Jó evidentemente voltou-se para Deus e começou a se dirigir a Ele com sua amarga queixa. Ele percebeu sua própria pequenez. Ele não era algo grande como um mar ou um monstro marinho, e, nos versículos 13-16, ele clama que suas próprias noites são um tormento com sonhos e visões de terror que, ele sente, vêm de Deus. Ele abomina sua vida presente e diz a Deus que deseja morrer.

Mas é perceptível como o tom de sua queixa e clamor muda, quando ele se volta para Deus a partir da presença de seus amigos. Ele é imediatamente levado a perceber a insignificância e até a pecaminosidade da humanidade. Seu clamor é: “Que é o homem...?” (v. 17) e embora ele não pudesse responder à pergunta com a luz mais clara concedida a Davi no Salmo 8, ou com toda a luz do Novo Testamento, ele sabia o suficiente para admitir que o homem não é o que deveria ser, e que é uma maravilha que Deus movesse Seu coração para com ele.

No versículo 20, ele vai ainda mais longe. Ele percebeu que Deus não o deixaria em paz e ele confessa pecar. A tradução de J. N. Darby traduz o versículo: “Pequei, o que faço para ti, o Observador dos homens?” e entendemos que “Observador” e não “Guarda” é a tradução correta. Ele sabia que estava sob o olhar de Deus, Aquele que podia perceber o erro onde Jó mal estava ciente disso. E por que Deus não concedeu perdão e removeu o peso de sua carga?

Assim, desde o início, Jó admitiu alguma consciência de culpa, mas, ainda assim, fortalecido por uma vida de piedade e retidão exterior, ele não percebeu a magnitude de sua culpa. Deus estava começando o processo que o levaria a ver quão profunda e tenebrosa era.

O que temos visto dessa mesma coisa em nós mesmos? Temos chegado à confissão de Paulo: “Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum” (Rm 7:18)?

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